Pressupostos Bíblicos para a Música Sacra – Bento XVI

"Não existe, por assim dizer, uma fé totalmente indeterminada culturalmente"

Excerto do livro “O Espírito da Música” (Ed. Ecclesiae, 2017. Tradução de Felipe Lesage)

Escolherei como fio condutor destas linhas o versículo de um salmo que sempre ressurge nas reflexões teológicas sobre os fundamentos da música sacra, pois ele é, de certa forma, o reflexo da orientação fundamental do Saltério enquanto tal. Falo do versículo 8 do Salmo 47. Muitas traduções retiraram o sabor original desse versículo… “Cantai um canto sálmico”! Essa versão deixa a cargo do leitor imaginar o que possa ser um “canto sálmico”… Buber e Rosenzweiv, quanto a eles, haviam traduzido: “Tocai de um modo inspirador”. Eles remetem portanto à inspiração artística que o canto deve proporcionar. A tradução proposta por Deissler é mais explícita: ele traduz a palavra em questão (“canto sálmico”) por “canto melodioso” (artisticamente composto).1 H. J. Kraus escolhe a mesma tradução em seu notável comentário dos salmos.2 A Bíblia de Jerusalém traduz também: “Fazei soar para Deus toda a vossa arte!”.3 A tradução publicada pela conferência episcopal italiana traduz, também ela, como cantar con arte. Tais são, essencialmente, as tentativas modernas de tradução da palavra hebraica maskîl. Mas as traduções antigas, que refletem os esforços da Igreja antiga, são também importantes para nós. A tradução dos Setenta, que tornou-se o Antigo Testamento da cristandade, havia traduzido: psalate synetos, o que nós talvez pudéssemos traduzir por: Cantai de forma inteligível – Cantai com inteligência, nos dois sentidos: que seja algo inteligível para vós mesmos e para os outros. Essa palavra, é bem verdade, é mais rica ainda em significado que nossa idéia racionalista de inteligência e inteligibilidade: Cantar sob a inspiração do Espírito e visando o Espírito; Cantai de uma maneira digna do Espírito e conforme ao Espírito; Cantai com disciplina e pureza. A tradução escolhida por Jerônimo e retomada na neo-Vulgata vai no mesmo sentido: psallite sapienter. A salmodia deve trazer consigo algo da ordem da sabedoria. Para bem compreender o que isso quer dizer, é necessário considerar aquilo que entendemos por sabedoria: uma conduta do homem que inclui também a luz da inteligência, é claro, mas que significa a integração do homem como um todo, que não somente compreende por meio do pensamento, mas por todas as dimensões de sua existência. Nesse sentido, existe uma afinidade entre a sabedoria e a música, que pode ser a ocasião de uma tal integração do ser homem, na qual o homem como um todo torna-se conforme ao Logos. Notemos, enfim, que num contexto semelhante (Salmo 33, 3), nós encontramos na Vulgata a expressão “bem salmodiar” ou “bem cantar” (bene cantare), o que Agostinho, por exemplo, interpreta naturalmente: cantar como nos ensina a “ars musicae”. É assim que a Igreja tomou consciência, partindo dessas expressões dos salmos, da exigência de uma grande arte na expressão musical do louvor a Deus.

[…]

A análise do imperativo psallite, que ressurge sem cessar nos salmos, nos permite assim tirar algumas conclusões concretas para nossa questão das eventuais referências bíblicas para a música a ser praticada na Igreja:

a) Um imperativo atravessa toda a Santa Escritura, a saber o chamado à adoração e à glorificação de Deus, o que é apresentado na Bíblia como a vocação mais profunda do homem. Isso significa que a resposta humana mais pertinente ao desvelar-se de Deus, à sua abertura que implica uma relação conosco, compreende também uma expressão musical. A simples palavra, o simples silêncio ou o simples agir não bastam. Essa expressão humana tão potente da alegria e da tristeza, da resignação e da queixa que é o canto se impõe em nossa resposta a Deus, Ele que nos atinge justamente na totalidade do nosso ser. Nós vimos que a palavra psallite é mais ampla que nossa palavra “cantar”; ela não requer necessariamente o acompanhamento instrumental, mas, por sua origem, remete também aos instrumentos que fazem, por assim dizer, ressoar a Criação. A assimilação bíblica dessa palavra, em todo caso, fez surgir um primado do canto, ou seja, de uma música relacionada aos textos.1

b) O imperativo musical da Bíblia não é, portanto, totalmente indeterminado, mas remete a uma forma que a fé bíblica foi criando para si progressivamente, como sendo seu modo de expressão mais pertinente. Não existe, por assim dizer, uma fé totalmente indeterminada culturalmente, que estaria então aberta a toda inculturação. A decisão da fé implica, enquanto tal, uma decisão cultural: ela forma o homem e exclui assim diversas outras formas de cultura onde ela não pode ver senão deformações. A fé é em si mesma criadora de cultura, a qual ela não se contenta em portar como um mero adorno exterior. Esse pressuposto cultural, o qual nós não podemos manipular a nosso bel-prazer e que será critério para todas as inculturações posteriores, não é inflexível e nem fechado: podemos reconhecer precisamente a grandeza de uma cultura em sua capacidade de assimilação, sua capacidade de relacionar-se, em sua abertura aos intercâmbios, sincrônicos ou diacrônicos: ou seja ela é capaz de conhecer outras culturas contemporâneas e de se abrir ao desenvolvimento da cultura humana na medida em que avança o tempo. Essa aptidão ao intercâmbio e ao florescimento encontra sua expressão no imperativo que retorna, também ele, sem cessar: “Cantai ao Senhor um cântico novo”. As experiências da salvação não se situam apenas no passado, mas se renovam sempre, e convocam portanto a uma nova proclamação, sempre renovada, do hoje de Deus. Esse Deus de quem seria mal compreender a eternidade se a víssemos como um enclausuramento em decisões tomadas “desde sempre”. Ser eterno significa, ao contrario, ser contemporâneo a todas as épocas e avançar-se sobre cada época.


1Pode-se encontrar indicações interessantes a esse respeito em H. GESE, “Zur Geschichte der Kultsänger am zweiten Tempel”, in Vom Sinai zum Sion, Munich, 2 ed., 1984, p. 147-158.

1A. DEIßLER, Die Psalmen, Düsseldorf, 1964, p. 192.

2H. J. KRAUS, Psalmen I, Neukirchen, 1960, p. 348

3[Sonnez pour Dieu de tout votre art!] La Sainte Bible, traduzida em francês sob a direção da Escola Bíblica de Jerusalém, Paris, Cerf, 1955, Ps 47, 8.

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