A VISÃO NORMAL DA ARTE

O artista de nosso tempo exclama: "Como ousa meu patrão saber aquilo que quer?"

Immaculate Heart – C. G. Chambers (1882-1964)

A Visão Normal da Arte – por Ananda Coomaraswamy (tradução de Felipe Lesage)

Ars sine cientia, nihil: Jean Vignot (arquiteto), Milão, 1398

I. INTRODUÇÃO

A palavra “normal” deriva do latin norma, que se relaciona com o grego gnomon, “esquadro de carpinteiro”, com o grego gign skein “conhecer”, como o sanscrito jaanana. Todas essas palavras se relacionam com o nosso “conhecer” moderno. Assim, nosso título parte do princípio que a natureza e os valores da arte, e a relação própria entre o homem enquanto artista e o homem enquanto homem não são, de modo algum, matéria de opinião, ou que tenham de ser descobertos por meio de um procedimento empírico, mas são matérias de conhecimento certo. Assim é que Santo Tomás diz que « A arte possui fins fixos e meios de operação verificados »; e de modo similar, na Índia, a arte é vista mais como um corpo de conhecimento que devemos aprender e uma habilidade a ser adquirida, – do mesmo modo como se aprendem e põem em prática os princípios da engenharia, e o patrão requer deles um produto que “funcione” – do que uma questão de sentimento ou de gosto pessoal. A visão normal da arte pressupõe ao mesmo tempo uma visão normal da vida, com uma hierarquia de valores verificados. Por outro lado, “sem sombra de dúvidas, a partir do Renascimento as obras de arte foram compradas às custas da vida ordinária” (Ranke): contrariamente àquilo que se havia assumido, que a arte, assim como o Sábado, fora feita para o homem, passou-se a assumir que a arte existia para si mesma, e que deveríamos servi-la com nossas vidas. Já faz tempo que pudemos perceber que nem tudo vai bem com a arte de nossos dias; mas ao reconhecer isto, não nos permitamos considerar a enfermidade da arte como outra coisa senão um sintoma, nem gastar nosso tempo em busca de remédios meramente paliativos; devemos restabelecer a saúde do organismo como um todo, o qual, quando se encontra são, por essa mesma razão goza de saúde em todas as suas atividades. Não devemos personificar a “Arte” e acusá-la de ser a culpada de suas próprias desordens; lembremo-nos como disse Plotino, “Quanto às artes e ofícios, tudo aquilo que se há de buscar quanto às necessidades da natureza humana estará guardado no Homem Absoluto”.

II. A VISÃO ANORMAL

Uma visão anormal da arte desenvolveu-se e prevaleceu durante dois períodos da história humana, curtos e relativamente carentes de importância: o período clássico tardio e durante os últimos quinhentos anos na Europa. Nenhuma aberração semelhante jamais se desenvolveu espontaneamente na Ásia, mas pode-se observar que durante esses dois períodos a Ásia foi afetada por contágio pela civilização européia, e, sob tal influência, hoje em dia, pode produzir pretensas obras de arte, inferiores até mesmo às de uma sociedade completamente industrializada. Se a isso acrescentamos que a visão normal da arte está ligada teoreticamente também com as pressupostos fundamentais da cristandade doutrinal, devemos observar de igual modo que a prática cristã contemporânea, devido ao fato de as idéias de virtude e de pecado terem se restringido ao mero campo da moral, e devido também à ignorância quase completa do ensinamento ortodoxo referente ao artista, submeteu virtualmente os campos do pensamento e da arte ao controle de Mamon.

Segundo a visão moderna, tudo aquilo que se produza para um uso físico é chamado de arte decorativa, aplicada ou industrial; e tudo aquilo que se produza para uso intelectual é chamado de arte do belo, arte pura ou simplesmente Arte com A maiúsculo. Aqueles que produzem coisas se dividem igualmente em duas castas, respectivamente operários – ou artesãos – e artistas. Se o operário necessitar produzir ou utilizar obras de arte, não se espera que ele o faça em conexão com sua função humana, enquanto produtor de coisas concebidas para o uso prático, mas enquanto um entretenimento, a ser cultivado durante as horas de ócio; e ademais os novos aparatos tecnológicos lhe permitem poupar trabalho, concedendo-lhe tempo livre para “coisas mais elevadas”. Chama-se ademais esse trabalhador de um homem “livre”, pois tem a liberdade de trabalhar ou de morrer de fome, e deste modo o distinguimos tecnicamente do escravo, que também deve trabalhar, mas a quem não é permitido que morra de fome.

Já o artista, por sua vez, é um ser de espécie tão nobre, que se vem a morrer de fome perseguindo obstinadamente um ideal num sótão abandonado, não o condenamos, como o faríamos no caso de um artesão. Não o tomamos por um anti-social, mas por um incompreendido, que ademais se orgulha em crer que está trabalhando para a posteridade. O artista moderno é um tipo especial de homem, distinto dos outros, certamente não por sua sabedoria, mas por sua sensibilidade, por conta da qual se lhe é conferida uma licença moral correspondente. Ainda que o artista espere ser pago – e se possível muito bem pago – por seu trabalho, não lhe agrada prestar contas a quem quer que seja. O patrão paga o gaiteiro, mas não pode decidir a melodia que quer ouvir. Se o patrão reprova o produto por não ser aquilo que queria, todo o mundo artístico se sente ultrajado: “Como se atreve o patrão a saber aquilo que quer?”1

O fato de que o artista deva ser elogiado por um exibicionismo que está condenado em todos outros homens é algo ainda a ser explicado; e os especialistas da conduta humana tampouco parecem se recordar que sempre que os bebês choram também estão a se expressar, e que todo gângster é movido igualmente por impulsos íntimos, ou por que é que ao artista é permitido tratar seu público como seu capacho. Ao mesmo tempo que o público se sente atraído pelo exibicionista moderno, não se atrai pela arte enquanto tal, senão enquanto uma auto-revelação de uma personalidade peculiar e, via de regra, anormal. O próprio artista está emancipado de todo trabalho degradante: se ainda é ele quem pinta seus próprios quadros, recorre não obstante a uma reprodução mecânica assim que se lhe é pedida uma cópia, a uma máquina de cinzelar tão logo se veja frente a um bloco de pedra dura, e a uma quadrilha de pedreiros contratados sempre que precisar construir algo. Ele se dá a liberdade de escolher seus próprios temas. O fato de seus temas nunca serem idéias, mas ideais, não é tanto por culpa do artista, mas uma conseqüência do fato que, a despeito de si mesmo, ele pertença a sua época, a qual é particularmente sentimental, viciada na superstição dos fatos, que já não está acostumada, como os homens estavam acostumados na primeira parte da Idade Média e em outros tempos normais, a pensar em termos de símbolos abstratos e padrões significantes. Representa sobre a tela paisagens, nus, efeitos de luz ou sua própria alma, seja do modo como realmente são ou em versões idealizadas e melhoradas de acordo com seu gosto; seu forte é o gênero, – uma categoria quase desconhecida nas artes dos períodos normais.

É verdade que a crítica tem muito o que dizer sobre o “significado” da arte moderna, mas nós nunca nos perguntamos “de quê” trata todo esse significado. Ao contrário, e citando aqui um professor contemporâneo de História da Arte, instrutor da juventude numa de nossas grandes Universidades, “é inevitável que o artista seja ininteligível, dado que sua natureza sensível, inspirada pela fascinação, o espanto e a excitação, se expressa a si mesma nos termos profundos e intuitivos da maravilha inefável”. Em outras palavras, do artista espera-se e exige-se que discurse com eloqüência abstrusa até mesmo sobre o verde da grama. Qual não é o amargor com que a mentalidade moderna sente a presença de qualquer significado preciso em uma obra de arte… Podemos constata-lo em algumas observações recentes do Sr. Keyne’s tratando da iconografia de Blake. Diz ele: “Por mais desagradável que possa ser encontrar um significado em cada um dos ‘mais mínimos detalhes’ destas soberbas criações do gênio de Blake, é impossível ignorar, hoje, o fato de terem exatamente estes significados, e que o próprio Blake considerava sua interpretação como dotada de profunda significação”.

Por outro lado, na visão normal da arte “a beleza é familiar à cognição”. A obra de arte é pois como uma equação matemática, inútil se ininteligível ou inexata em qualquer um de seus “mínimos detalhes”. Como disse muito bem o Professor Takács, “Segundo as idéias orientais, uma característica indistinta, uma forma elaborada incompletamente, não é um valor artístico completo”. Se considerarmos o valor físico ou espiritual do artefato, a finalidade da obra é, sempre, uma finalidade operativa.

Tolstói estava portanto perfeitamente certo ao considerar a arte como coisa essencialmente comunicativa; e igualmente, dado que os propósitos da arte são humanos, ao argumentar que aquilo que se há de comunicar deve ter valor intelectual e moral. Ao argumentar assim, ele concorda com Platão e Aristóteles em sua teórica da retórica. Isto não quer dizer que a virtude do artista e aquela do homem sejam a mesma, mas que um homem completo necessita possuir ambas as virtudes; o Homem Eterno é, a um só tempo, um patrão e um artista, que deve saber a um só tempo aquilo que é digno de ser feito e como fazê-lo. A fatura das coisas não implica somente destreza mas também propósito, não implica somente intelecto mas também vontade. Se a única incumbência do artista é ser eficiente, também é incumbência do homem ter um propósito reto.

Os primórdios da arte cristã representam um retorno à normalidade desde as irrealidades da decadência clássica, na qual, como ocorre conosco hoje em dia, as artes passaram a ser cultivadas por elas mesmas e como um meio de autopropaganda. Podemos perceber essa guinada mais claramente em Santo Agostinho, quando em uma crítica da sofística ele diz: “Chamamos de ‘sofístico’ um discurso que cultiva antes o ornamento verbal do que a responsabilidade quanto ao conteúdo do que é dito”. A própria retórica de Santo Agostinho, como diz Balwin, volta alguns séculos antes da linguagem do triunfo pessoal para reencontrar a antiga idéia de mover os homens rumo à verdade, àquela devastadora pergunta de Platão “afinal, de quê tratam os sofistas tão eloqüentemente?” e a Aristóteles, cuja teoria da retórica consistia na arte de dar mais efetividade à verdade do que ao orador.

Nossa época, ao contrário, caiu na posição característica da “segunda sofística”. Uma vez mais pensamos na beleza e na verdade enquanto valores que não têm nenhuma relação; e fazemos de nossas artes aquilo que Platão chamava de “artes da adulação”, algo mais saboroso do que nutritivo, ou seja, conduzindo mais à vida do prazer do que às vidas ativa ou contemplativa, às quais se ordenavam nos períodos normais. Nada é mais comum do que afirmar, por exemplo, que ainda que as Sagradas Escrituras, Dante, Platão e outros já não contenham valores credíveis para nós, devemos todavia lê-los por seus valores literários e estéticos. Afirmamos o mesmo ao tratarmos às artes visuais e às artes orientais, propondo-nos sempre utiliza-las enquanto guloseimas, nunca como alimento.

Por conta de não podermos mais apreender a idéia de verdade, mas somente a de verdades, chegamos a pensar na arte como um substituto das coisas, e esta abordagem materialista e sentimental nos é tão natural que amiúde ouvimos dizer do trabalho dos primitivos que “isto era antes que conhecessem algo sobre anatomia”. E não se trata aqui, como alguns poderiam dizer, de um ponto de vista vulgar, mas algo tido como provado em todas nossas histórias da arte, nas quais se assume a idéia de um progresso ou evolução, a despeito de todos os elogios verbais que se prodigalizem aos primitivos. De fato, nossa compreensão atual de arte é a um só tempo tão limitada, e tão satisfatória para nós mesmos, que atualmente consideramos a arte abstrata dos selvagens e primitivos como um esforço mais ou menos estimável, que tendia às nossas próprias capacidades imitativas; cremos realmente que os selvagens e primitivos “desenhavam assim” porque ninguém lhes havia ensinado uma maneira melhor.

Nós até entendemos, é certo, que toda arte seja imitativa, ou seja, imitando aquilo que o artista vê: mas como hoje em dia entendemos por “ver” nada mais que o que se enxerga pela faculdade intrínseca do olho, esquecemos que aqueles outros podem “não ter visto a mesma árvore que estamos vendo”, mas algo mais próximo à Árvore real, da qual só captamos exemplos particulares. Supor outra coisa é, certamente, ignorar todo o significado intelectual da iconoclastia, esquecer que, como disse Tertuliano, o Querubim e o Serafim da Arca “não foram fundidos sob forma de excessiva semelhança por conta da proibição (de idolatria)”… É ignorar que uma cruz ou uma roda podem ser uma pintura do universo mais verdadeira que qualquer paisagem.

Devido a esse dito sentimentalismo que vê na obra de arte uma realização essencialmente exibicionista, nossas atuais histórias da arte se interessam também principalmente pelas biografias dos artistas, ou grupos de artistas, em suas peculiaridades, e nas influências mútuas exercidas entre eles, e não na motivação ou propósito de sua obra. Nós substituímos o estudo da arte propriamente dito pelo estudo do estilo, que é propriamente um acidente da arte, dependente do fato de que não se pode conhecer, faz ou dizer nada senão de alguma maneira. As fontes do estilo podem ser encontradas, certamente, na idiossincrasia do artista, mas o artista normal não está consciente de todas essas coisas; somente o paranóico crê conscientemente num estilo próprio. Assim sendo, não devemos nos surpreender quando nossas categorias de compreensão da arte se vejam anuladas ao chegarmos a esses períodos normais nos quais os artistas só assinavam seus nomes muito raramente, e ninguém escrevia as biografias deles. A nós não nos ocorre que as artes normais estavam associadas a uma ideologia que afirmava ser uma condição indispensável da visão beatífica, ou da pura contemplação estética, que um homem deve libertar-se de si mesmo, como uma parta se liberta de sua parcialidade, quando se perde ou se encontra consigo mesma – as duas expressões significam o mesmo; nem que o “estilo” do Arquiteto Divino, que representava na tradição a condição limite da operação artística perfeita, é desprovido de toda idiossincrasia, de modo que, em Sua pintura do mundo Ele cria um homem e uma ameba de uma só e mesma maneira, cada qual segundo seu tipo; e assim se dá também nas sociedades normais e unânimes, nas quais uma ponte e uma catedral, ainda que cada uma sirva a seus fins próprios, são feitas num só e mesmo estilo.

1Os negritos nesta tradução são meus (NT).

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